ENTREVISTA COM RAFAEL DE AGAPITO SERRANO1
Por Agassiz Almeida Filho
Professor Titular de Direito Constitucional da UEPB
Em 2009, Rafael de Agapito Serrano, Decano da Faculdade de Direito da clássica Uni-versidade de Salamanca, completou quarenta anos de dedicação à vida universitária. Parte de uma geração que começa a dedicar-se aos problemas da polis em plena ditadura de Franco, seu pensamento constitucional se projeta como um esforço no sentido de harmonizar a natureza jurídica da Constituição com sua inevitável dimensão política, baseando-se, para tanto, no estudo dos fundamentos do Direito e do Estado. Para Agapi-to, em síntese, “a questão nuclear e verdadeiramente difícil do Direito Constitucional é descobrir como se pode conhecer e interpretar de forma justificada os princípios sobre os quais repousa o ordenamento constitucional”.
Esta entrevista, realizada em novembro de 2009 e agora publicada pela Revista Forense, inaugura o ciclo de homenagens brasileiras ao professor Rafael de Agapito Serrano, que inclui, entre outras iniciativas, a publicação de um livro de homenagem e de dois dos seus principais trabalhos. Referência incontornável do pensamento constitucional con-temporâneo, jurista que busca a justificação do Direito no diálogo político mediado pe-las instituições do Estado Constitucional, Rafael de Agapito Serrano simboliza algo que às vezes parece perdido entre nós: a crença na democracia constitucional como saída para uma convivência pacífica e justa.
Agassiz Almeida Filho – O franquismo e toda a sua carga social e ideológica carac-terizavam o ambiente cultural espanhol no final da década de 1960, com os inúme-ros obstáculos que os regimes totalitários geram para o desenvolvimento da criati-vidade e do pensamento livre. Antes de mergulhar nas questões propriamente ju-rídicas e políticas, e seguindo aquilo que já constitui uma praxe neste tipo de en-trevista, gostaria de saber o que o levou a optar pela vida universitária e pelo estu-do do Direito Constitucional em um cenário tão conturbado.
Rafael de Agapito Serrano – Sempre é difícil voltar no tempo, e, num momento de in-trospecção, tentar determinar o que motivou a opção pela carreira profissional. Contudo, e apesar de algumas sérias adversidades, posso dizer que minha vida intelectual foi bas-tante estável. No final das contas, dentro das minhas possibilidades, creio que consegui
1 A presente entrevista acadêmica, feita originariamente em espanhol, foi traduzida para o português por Agassiz Almeida Filho. A Revista Forense, através de Francisco Bilac Pinto Filho, acolheu com toda receptividade a sugestão de publicá-la dentro do ciclo de homenagens a Rafael de Agapito Serrano, rea-firmando, com isso, o seu permanente compromisso com a divulgação e o aprimoramento do pensamento jurídico.
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desenvolver uma linha de pensamento compatível com as questões que desde o início despertaram a minha atenção.
Os primeiros passos da minha vida profissional, sem dúvida, foram marcados pelo exer-cício da advocacia do meu pai. Vivi e realizei meus estudos jurídicos dentro do seu es-critório, em um ambiente onde o Direito, sua aplicação e sua justificação eram um as-sunto quotidiano. Com ele, percebi logo cedo esses dois aspectos centrais do Direito: a segurança jurídica, e, com ela, a coerência interna do Direito, assim como a justificação das normas jurídicas em seu sentido mais amplo. Trata-se de aspectos que, apesar da sua importância, muitas vezes são entendidos como excludentes entre si.
Constatei precocemente as possibilidades do Direito como meio de resolução pacífica de conflitos. Na época, observei que essa pretensão, colocada como incumbência para o direito positivo, não consegue se realizar se os pressupostos com base nos quais o Direi-to é elaborado e aplicado não estiverem claros. A essa altura, creio que há argumentos suficientes para defender que a qualidade do Direito está vinculada à legitimação da forma através da qual ele é produzido.
Sei que a opção de me dedicar à reflexão sobre esses temas fundamentais pode ter sido uma decepção para minha família, que talvez esperasse de mim a continuidade do escri-tório do meu pai. Porém, acho que fui coerente com aquilo que aprendi no âmbito fami-liar.
Os anos finais da minha graduação transcorreram durante a última fase do regime polí-tico anterior. Havia muita rigidez, mas também um grande número de estímulos e um elevado grau de compromisso. O momento era propício para a busca da fundamentação última de uma forma de organização política que contribuísse para a legitimação e a justificação do Direito.
Agassiz Almeida Filho – Há quarenta anos, quando você iniciou sua carreira aca-dêmica, como era a universidade espanhola? E o que mudou nesses anos todos?
Rafael de Agapito Serrano – Naquele momento, em termos de centros e professores, a universidade espanhola era uma instituição consideravelmente menor do que na atuali-dade. Tinha um forte caráter hierárquico e, em grande medida, era fechada sobre si mesma. Os vencimentos, em todos os níveis, eram realmente baixos, de modo que a dedicação exclusiva à investigação e à docência universitária era difícil. Isso freqüente-mente obrigava o professor a dedicar-se a outras atividades.
O nível do conhecimento denunciava o empobrecimento e o localismo gerados pelas características históricas do regime. É verdade que ainda se podia encontrar na universi-dade personalidades de altura. Em grande medida, porém, elas estavam isoladas. Tam-bém havia um controle intenso sobre algumas áreas e matérias sensíveis para o regime.
Foi durante os meus estudos de graduação, ou logo depois, para ser mais exato, que um certo número daqueles que começavam a carreira acadêmica começou a sair do país para ir a outras instituições acadêmicas européias. Havia uma séria falta de recursos.
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Isso nos obrigava a procurar, por nossa própria conta, as alternativas e os elementos bibliográficos exigidos pelo trabalho de investigação. O retorno a nossas instituições, depois de um período de estudos em instituições européias fora da Espanha, não era fácil. Sem dúvida, a universidade de hoje possui muito mais instrumentos do que antes. Isso permite uma dedicação exclusiva à carreira universitária, incrementando, assim, a qualidade da investigação e do ensino.
Passamos por um período de massificação, compatível com o aumento do nível de vida no país. Também se produziu uma reorganização muito complexa da universidade, que, em certas ocasiões, não permite diferenciar claramente as questões acadêmicas das ad-ministrativas. A qualidade de alguns setores termina sendo contrabalançada pela conti-nuação de um localismo que se acentuou através do modo de seleção do professorado e das limitações e restrições geradas pelas questões burocráticas e orçamentárias.
A nova reforma do ensino universitário, na linha do Projeto de Bolonha, tão discutido, e, para dizer a verdade, tão pouco compreendido no nosso país, constitui, apesar de tu-do, uma possibilidade de reflexão e busca de alternativas, tanto no campo da docência como na investigação. O ponto de partida da reforma universitária é a intensificação das relações com instituições internacionais.
Agassiz Almeida Filho – Como se deu a sua formação acadêmica e quais os autores que mais o influenciaram?
Rafael de Agapito Serrano – Ao terminar o curso de Direito, e depois de um ano traba-lhando com Direito Processual, tomei a decisão de me dedicar ao Direito Político, como então se chamava a nossa disciplina. O Direito Político já se dedicava a problemas es-pecíficos do Direito Constitucional, considerados verdadeiros tabus na época. Naquele momento, a História das Idéias Políticas tinha um bom desenvolvimento entre nós, mo-tivo pelo qual esta matéria constituiu para mim um primeiro objeto de estudo, sem pre-juízo de continuar me interessando durante todo o decorrer da minha carreira. No âmbi-to do Direito Constitucional, eram uma nítida referência o professor Manoel García-Pelayo, que na época estava na Venezuela, e a incipiente escola que surgiu a partir do seu trabalho. Logo depois, aprovada a Constituição, o trabalho de García-Pelayo viria a ter uma importante influência.
Os primeiros passos da minha formação foram orientados por Ángel de Juan Martín, um professor que nos anos 1950 teve a difícil iniciativa de ir viver na Alemanha para buscar a formação que não encontrava no nosso país. Trabalhando e estudando ao mesmo tem-po, o professor Ángel de Juan conquistou espaço nos centros mais avançados da univer-sidade alemã. Era uma cabeça privilegiada, brilhante, que, porém, precisou se baldear, ocultando um pouco o conteúdo da sua formação e as conclusões dela decorrentes. Sua orientação foi muito importante, pois abriu as portas, para um grupo de professores em formação, à melhor cultura acadêmica européia. No meu caso particular, sua orientação foi fundamental porque tornou clara para mim a relação entre Direito e realidade social, sem deixar de lado, com o fim de justificar o Direito e como conseqüência disso, a bus-ca da explicação dessa relação através da dimensão política.
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Sob sua orientação, durante os primeiros anos da década de 1970, realizamos seminários com trabalhos escritos e protocolos de discussão sobre temas centrais do pensamento jurídico e social alemão, iniciativa que precisou interromper-se pelo fato de as autorida-des acadêmicas considerarem que estávamos realizando uma “atividade dissolvente”. A conseqüente não renovação do meu contrato de professor ajudante na Universidade teve como resultado um período de três anos de desvinculação da Faculdade, durante o qual dei prosseguimento à minha formação privadamente. Esse período terminou quando começava a se elaborar a Constituição de 1978. Também nessa fase pude contribuir para a consolidação de uma das organizações sindicais mais importantes do nosso país.
Desde o começo, portanto, meus estudos foram direcionados pelas instâncias de investi-gação na Alemanha, onde acompanhei os avanços da teoria social e do Direito Público. Estudei as formulações da teoria social, na qual ocupava lugar de destaque a chamada Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Habermas). Ao longo de algumas viagens, tive acesso a versões escritas dos seus mais interessantes seminários superiores, através das quais pude aumentar as minhas referências sobre o assunto. Assim se enfocava o estudo do social, desde as abordagens filosóficas mais profundas e rigorosas. Dediquei também algum tempo a estudar as idéias sociológicas mais avançadas do momento, em particular o ponto de vista de Niklas Luhmann, que, àquela altura, havia dado início à complexa teoria (teoria dos sistemas) que chegaria a desenvolver depois, com relevantes contribuições para o Direito.
Entretanto, simultaneamente, meu interesse central era o estudo do Direito, e, em parti-cular, do Direito Público, debruçando-me sobre a obra de autores como Konrad Hesse (e sua escola), Denninger, Grimm, Böckenförde, Häberle, entre outros.
Meu interesse pela Teoria do Estado me levou a estudar com profundidade a tradição anglo-saxônica, principalmente a concepção inglesa de Estado Constitucional, como um dos modelos indispensáveis para entender as categorias fundamentais do Direito Consti-tucional. A obra de Martin Kriele, talvez o primeiro que tenha tentado compreender e combinar na Teoria do Estado as tradições anglo-saxônica e continental-européia, foi uma peça fundamental para que eu pudesse penetrar no complexo campo do Direito Constitucional, onde analisei também as contribuições básicas da França e dos Estados Unidos.
O resultado desse período de formação pode ser visto nos dois livros que serão publica-dos no Brasil em 2010. Um deles trata de interpretar a contribuição que deu Montesqui-eu à compreensão aprofundada do princípio da divisão de poderes; o outro versa sobre a posição do processo político e suas categorias fundamentais no Estado Constitucional. Na realidade, os dois livros são partes da minha tese de doutorado, a segunda e a tercei-ra, pois ela se dividia em três grandes temas. A primeira parte, que ficou inédita, dedi-cava-se à função e aos limites do controle de constitucionalidade no Estado Constitu-cional. Ela abria caminho para compreendê-lo como uma contextura complexa de fun-ções e garantias, na qual estas diversas funções a partir das quais ele se constrói preci-sam funcionar corretamente. Isso não permite que se tente buscar atalhos, dando priori-dade apenas a algumas dessas funções. No Direito Constitucional, os atalhos costumam
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levar a retrocessos, pois implicam reduções ou simplificações de outras garantias, o que acaba afetando o Direito em sua função de resolução geral de conflitos e de satisfação das necessidades sociais.
Esse trabalho demonstrou para mim a importância de conhecer o desenvolvimento teó-rico e histórico das categorias básicas do Direito Constitucional, como um elemento de grande importância para a interpretação dos nossos textos atuais. Na linha de outros autores (Reinhart Kosellek, Otto Brunner, Werner Conze, em suas próprias obras e no dicionário enciclopédico realizado sob sua coordenação, Geschichtliche Grundbegriffe), creio que a Teoria Constitucional é um instrumento que deve se somar aos cânones da interpretação jurídico-constitucional e estar presente entre eles.
Agassiz Almeida Filho – A sua geração é herdeira direta do constitucionalismo que eclodiu após a Segunda Guerra Mundial, caracterizado, entre outros aspectos, pela valorização dos direitos fundamentais e pela “universalização” do regime demo-crático. Qual o impacto dessas idéias na evolução da Constituição espanhola de 1978 e na integração européia?
Rafael de Agapito Serrano – Nossa Constituição é tardia, se a compararmos com as que foram elaboradas após o fim da Segunda Guerra Mundial. Por isso, talvez se possa di-zer, em seu próprio benefício, que ela pôde aproveitar os avanços que tornaram explíci-tas e concretas as principais idéias por trás da profunda mudança produzida no constitu-cionalismo com aquelas Constituições européias, em particular com as Constituições da Alemanha, da Itália e da França. Ademais, a observância da jurisprudência elaborada com base nesses diplomas constitucionais proporcionou uma concepção mais clara das linhas fundamentais que podiam ser estabelecidas a partir das suas disposições. Por sua vez, não há dúvida de que o “consenso” político foi possível por causa da visão e da vontade das distintas forças políticas que atuaram nesse momento, mas também graças à existência de uma idéia mais clara acerca do que se esperava delas.
Nossa Constituição conseguiu trazer algumas contribuições originais, como o estabele-cimento de uma gradação em matéria de eficácia dos direitos fundamentais (art. 53), o que permite evitar a imprecisão na diversificada estrutura jurídica dos direitos, facilitan-do a concepção e aplicação da norma fundamental como norma jurídica. Neste terreno, foi ganhando espaço uma interpretação complexa das liberdades fundamentais, como resposta a uma concepção intersubjetiva e multifuncional acerca dessas liberdades. Sua abertura, estabelecida normativamente, avança no sentido de uma interpretação baseada nos textos e na jurisprudência internacionais, que se tornam verdadeiras pautas de refe-rência para a aplicação de tais liberdades. Essa abertura deu origem a uma aproximação e ao fortalecimento de um padrão internacional na vigência dos direitos.
A Constituição de 1978 também foi original, especialmente, no que diz respeito à nossa própria história constitucional e à sua tradicional vinculação ao modelo de Estado unitá-rio francês. Essa originalidade se manifestou no momento em que ela previu a descen-tralização político-administrativa do Estado, que hoje, em alguns aspectos, apresenta uma intensidade maior do que a de qualquer Estado federal. Essa descentralização esta-va só esboçada no texto constitucional, tendo sido desenvolvida posteriormente por
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meio de um processo bastante complexo. Em alguns das suas manifestações, o desen-volvimento dessa descentralização se deu com base em critérios dificilmente compatí-veis com as exigências de um Estado Constitucional.
Era um lema constante a identificação – ingênua e fundada em interesses conjunturais – dessa descentralização com a democracia. A idéia era a seguinte: quanto mais descen-tralização, mais elevado o nível da democracia. Na verdade, em alguns casos essa reali-dade fez com que se propusesse um desenvolvimento voltado para a adoção de uma forma confederal de Estado, baseada, para tanto, em um conceito historicista de nação. O esquecimento de que atualmente a nação não pode ser mais do que o povo, abarcando todos os cidadãos como sujeitos dotados das mesmas liberdades, ao lado do protago-nismo dos partidos políticos de base regional – decorrência do nosso sistema eleitoral –, criaram a seguinte situação: as instâncias centrais do Estado estão se deparando com a diminuição da sua capacidade de ação, além de vincular-se excessivamente a compro-missos conjunturais.
A Constituição, seguindo o critério estabelecido, desde os primeiros momentos constitu-intes, com a Lei para a Reforma Política, incorpora plenamente o princípio democrático como base e legitimação da ordem constitucional. Talvez seja neste terreno onde nossas construções constitucionais tenham sido mais pobres. Afinal, o princípio democrático foi freqüentemente vinculado à simples expressão eleitoral numérica dos votos, o que levou a identificá-lo, sem mais nem menos, com o princípio da maioria, em favor de uma posição excessivamente dominante dos partidos políticos em todo o sistema consti-tucional. Essa concepção limitada do princípio democrático acentua no nosso sistema parlamentar o risco de que ocorra uma confusão entre os poderes Executivo e Legislati-vo, com a conseqüente “majoritarização” dos debates e das decisões.
Agassiz Almeida Filho – Como as disputas ideológicas entre os grupos que com-põem o cenário político espanhol, notadamente nos últimos dez anos, têm interfe-rido na realização da Constituição de 1978?
Rafael de Agapito Serrano – Certamente, nestes últimos anos a relação entre os grandes partidos nacionais parece aproximar-se, perigosamente, da forma de conceber o político de Carl Schmitt. O processo político, em todas as suas manifestações, inclusive no âm-bito dos próprios meios de comunicação, apresenta-se como uma pugna amigo/inimigo, na qual o mais importante é a exclusão ou a anatematização do grupo contrário. Nos últimos tempos, vem ganhando corpo a tendência de se ressuscitar e se reativar velhos problemas (fantasmas) da nossa história constitucional, a exemplo, para citar um deles, da discussão sobre a forma de governo (monarquia ou república).
Aparentemente, essa discussão se relaciona sobretudo com a intenção de criar e intensi-ficar de modo artificial, com meros fins eleitoreiros, uma cisão e um antagonismo entre esquerdas e direitas que na verdade não existem na nossa sociedade. Junto a isso, entre os cidadãos há a impressão de que a política com inicial minúscula, em boa medida, penetra e atravessa todas as instituições do Estado, atuando também junto ao pluralismo existente na sociedade.
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Não obstante, com o fim de superar a inquietação acerca da realização da Constituição, talvez seja mais relevante destacar, ao lado dessa forma realmente regressiva e defor-mada de fazer política, uma espécie de acordo de fundo entre os partidos políticos de âmbito nacional e regional. Em relação a algumas questões fundamentais, pode-se dizer que os partidos concordam acobertadamente em evitar o desenvolvimento normativo da Constituição. Isso ocorre principalmente em relação a aspectos específicos que já estão se tornando verdadeiramente problemáticos para a vida constitucional espanhola.
A desculpa que se utiliza em alguns casos é o medo da reforma constitucional. Este ar-gumento é mobilizado ainda que se saiba que em outros países da nossa região, como é o caso da Alemanha, já houve um número considerável de reformas, a maioria de cará-ter pontual, o que não impediu, porém, que algumas delas tivessem grande envergadura. Na sociedade espanhola atual isso não representaria nenhum problema.
Em geral, sente-se falta de uma regulamentação clara acerca das condições e garantias para um processo político adequado à sua função constitucional. Essa regulamentação não requer reformas da Constituição. Trata-se, mais modestamente e com igual relevân-cia, da regulamentação a nível infraconstitucional de toda uma série de questões. O sis-tema eleitoral tem especial importância, pois requer uma atualização capaz de reavaliar as vantagens que, no começo da marcha constitucional, foram estabelecidas em favor da consolidação dos partidos políticos. Hoje, essas vantagens atribuem uma prepotência inadequada aos partidos. Afinal, na atualidade a representação política não possui as garantias suficientes para assegurar que nela realmente se reflitam a vontade, os interes-ses e as opiniões dos cidadãos. No âmbito da esfera pública, também se constata a pre-cária configuração da atividade dos meios de comunicação, tanto por parte do Estado como dos próprios órgãos de imprensa (garantias de pluralismo, direito de resposta etc.).
Há dois aspetos centrais que também se pode assinalar como os mais carentes de revisão na atualidade. Refiro-me, em primeiro lugar, ao modo de designação dos membros do Consejo General del Poder Judicial (art. 122 da Constituição espanhola). Neste artigo da Constituição, introduz-se um órgão, novo em nosso constitucionalismo e inspirado na Constituição italiana, que figura como instrumento para o autogoverno dos juízes. Tratava-se de cortar a vinculação entre os órgãos de “governo” do Poder Judiciário e o Poder Executivo (Ministério da Justiça), como forma de garantir uma maior indepen-dência dos juízes e tribunais na aplicação do Direito. Sua regulamentação, que deu ori-gem a uma decisão do Tribunal Constitucional, foi objeto de dúvidas e mudanças, até que se chegou à concepção do modelo atual. Na sua decisão, o Tribunal, tímida mas claramente, chamava a atenção unicamente para o risco de que simplesmente se transfe-risse o peso político conjuntural dos partidos para esse órgão. E, em grande medida, foi isso o que aconteceu.
Aqui ficou um pouco de lado o significado constitucional da regulamentação do Conse-jo, que poderia tornar-se claro, a meu juízo, através de algumas das considerações de um clássico como Montesquieu sobre esse assunto. A Constituição estabelece (art. 122, 3) um Consejo, composto por vinte membros, sendo doze escolhidos “entre” magistra-
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dos e oito indicados pelo parlamento. Creio que esta composição corresponde à idéia de Montesquieu de que deve haver uma diferenciação nítida entre as funções ou poderes do Estado, evitando-se, ao mesmo tempo, que eles se isolem e passem a funcionar unica-mente a partir deste isolamento. Afinal, isso gera o risco de que seu funcionamento e suas decisões se guiem por interesses particulares derivados do corporativismo que sur-giria a partir daí.
Por isso, e tendo o funcionamento do Consejo como referência, é evidente que sua composição real deve se basear na primazia dos magistrados, ressaltando-se que a pre-sença dos membros designados pelo parlamento serve basicamente para se conhecer a sua dinâmica prática, influenciando esta como uma espécie de contrapeso, de modo a preservar a independência judicial frente a possíveis decisões guiadas por interesses particulares. O parlamento como tal não deve intervir neste terreno, a não ser através da elaboração de leis que sirvam para suprir as possíveis insuficiências das normas que regem o funcionamento do Consejo, às quais, naturalmente, a ação deste órgão constitu-cional precisa se ajustar. Na atualidade, é uma necessidade imperiosa desenvolver nor-mativamente as garantias referentes à composição e funcionamento desse órgão.
Outro aspecto central, em torno do qual gira abertamente a necessidade de uma reforma constitucional, é o da configuração da nossa segunda câmara, o Senado, como órgão de representação territorial. O desenvolvimento do Estado de las Autonomías ocorreu com grande intensidade, valendo-se, no entanto, de precárias previsões constitucionais. Na realidade, não se trata de um defeito da nossa Constituição, pois em seu articulado esta-va incorporado um dispositivo, segundo o qual a criação e configuração temporal das Comunidades Autónomas ficavam nas mãos daqueles que tinham a iniciativa para levá-las adiante.
A figura do Senado, sua composição e competências, foram definidas de modo muito frágil: sua composição se aproxima e reflete, em grande medida, a própria composição do Congreso de los Diputados (como representação do povo), e sua participação na função de legislar é quase inexistente, devido à facilidade com a qual o Congreso pode superar suas decisões (art. 90).
Sem prejuízo de reconhecer o arrojo e as vantagens da descentralização para as socieda-des complexas atuais, este processo gera problemas para o desenvolvimento de uma legislação nacional, cada vez mais necessária no contexto global do qual fazemos parte. E neste ponto parece lógico pensar que se torna imprescindível a existência de um órgão constitucional onde seja possível o debate parlamentar e a tomada de decisões a nível “horizontal”, ou seja, entre as próprias Comunidades Autónomas. Isso evitaria a negoci-ação contínua e vertical entre as Comunidades e a maioria no Governo, cuja tendência é construir sempre soluções e fórmulas conjunturais, sem uma verdadeira comprovação do seu interesse nacional. Também é necessário, conseqüentemente, que este órgão, por sua composição e competência, tenha a importância e a influência necessárias junto à função legislativa do Estado.
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Agassiz Almeida Filho – O processo de integração político-econômica que deu ori-gem à União Européia vem se projetando como um dos mais complexos desafios do Direito Constitucional contemporâneo, notadamente naquilo que diz respeito à aprovação de específicos marcos constitucionais para a região. A existência de uma Constituição européia significaria o fim da teoria clássica do poder constituinte? E como legitimar um projeto constitucional de que participam povos com tradições e valores jurídico-políticos tão diferentes?
Rafael de Agapito Serrano – Realmente, a realidade e a intensidade do processo de inte-gração européia colocam perguntas para o Direito Constitucional que vão além do seu tratamento pelo Direito Internacional. Em sua tese de doutorado, orientada pelo profes-sor Balaguer Callejón, da Universidad de Granada, Hugo César Gusmão faz uma inte-ressante pergunta sobre a possível existência de um poder constituinte “derivado” nas instituições européias. Essa pergunta se baseia no fato de o desenvolvimento normativo das instituições européias, em certas ocasiões, terminar afetando os marcos constitucio-nais (nacionais) dos Estados.
Apesar dos extensos argumentos desenvolvidos na referida tese, creio que, desde um ponto de vista formal, não se pode aceitar sua proposta. Afinal, se considerarmos que tais medidas podem afetar a norma constitucional, o natural é que elas se submetam ao controle de constitucionalidade. Feito isso, segundo o resultado da decisão jurídico-constitucional, será necessário modificar expressamente as normas constitucionais atin-gidas, de acordo com as garantias e procedimentos especificados nas próprias Constitui-ções nacionais. Os Estados conservam, nesse sentido, a última palavra.
Recentemente, isso se tornou claro com a rejeição final do projeto de um tratado consti-tucional para a Europa, ou seja, de uma Constituição para a Europa, e também com a posterior apresentação do Tratado de Lisboa. A princípio, este tinha pretensões mais modestas, movendo-se claramente, segundo os especialistas, no terreno específico do Direito Internacional. No final das contas, isso não impede que através do Tratado de Lisboa realmente se intensifiquem os mecanismos de cooperação entre os Estados en-volvidos.
Ante o desenvolvimento do processo de integração, talvez a jurisprudência do BVG alemão seja o exemplo mais patente dessa “reserva de constitucionalidade”, presente uma vez mais em uma recente decisão desse Tribunal. O BVG insiste continuamente na proteção dos níveis de garantia alcançados pelo Estado Constitucional Democrático e de Direito frente aos avanços sucessivos do processo de integração européia.
Por outro lado, falar do final da teoria clássica do poder constituinte em relação a esse processo seria algo que dependeria de algumas matizações. A que se refere essa teoria clássica? Talvez ao contexto analisado brilhantemente na obra que você escreveu sobre Carl Schmitt, que faz referência a esse poder como algo originário e ilimitado, de acor-do com a tradição francesa e as formulações do autor alemão?
Na realidade, atualmente a categoria do poder constituinte precisa ser encarada a partir do conhecimento e dos textos jurídico-constitucionais que caracterizam esta última fase
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do Estado Constitucional, posterior à Segunda Guerra Mundial. Neste contexto norma-tivo, seu caráter “originário” não pode ser entendido apenas em um sentido histórico ou mesmo meramente cronológico, como algo, ainda, que se refere a uma vontade fática capaz de decidir em último extremo. O poder constituinte deve ser entendido como “o-riginário” unicamente porque remete ao critério último de legitimação da norma consti-tucional. No final das contas, este critério é a vontade do povo como soberano.
Mas certamente o significado de tal legitimação também não se reduz a essa remissão formal à soberania popular. No contexto jurídico-constitucional da atualidade, e toman-do como base a experiência e as reflexões sobre a história constitucional, essa legitima-ção democrática precisa ser algo real, e só pode sê-lo na medida em que a vontade do povo de fato consiga formar-se livremente. Isso só é possível se ela for acompanhada das liberdades fundamentais responsáveis por assegurar informações suficientes e a pos-sibilidade da formação de um juízo próprio pelos cidadãos, sem temor ou manipulações. Hoje a democracia e os direitos fundamentais são os componentes incontornáveis da categoria do poder constituinte. O povo não é um sujeito coletivo e abstrato. O “povo” como categoria se refere simplesmente aos cidadãos, a cada um deles, a sujeitos, enfim, dotados de direitos e garantias fundamentais.
Isso é algo que também se deve esperar no âmbito da regulamentação das relações e das organizações internacionais, nem que seja como simples idéia por trás dessa regulamen-tação. Afinal, no complexo de conceitos e garantias desenvolvido em torno do Estado Constitucional, pode-se encontrar com mais segurança critérios para assegurar e verifi-car a justificação de todo o Direito.
Agassiz Almeida Filho – Há pelo menos dois elementos que caracterizam o Direito Constitucional contemporâneo: a importância crescente da jurisdição constitucio-nal e a estrutura aberta da Constituição. Na sua opinião, isso deve conduzir a uma maior valorização da faceta política da Constituição por parte do pensamento constitucional?
Rafael de Agapito Serrano – Acho que a importância da jurisdição constitucional não pode ser colocada em discussão. Ao contrário, é preciso apostar nela, analisando as condições através das quais essa jurisdição pode se tornar mais efetiva e adaptada à sua função. E talvez uma dessas condições atinja outra das afirmações contidas na pergunta: a estrutura aberta da Constituição. Na realidade, acredito que esta idéia é claramente discutível, apesar da existência de uma ampla corrente de opinião nesse sentido.
No meu ponto de vista, a defesa dessa estrutura aberta se baseia em uma confusão. Uma coisa é que através da norma constitucional se estabeleça garantias e processos baseados no critério fundamental da “abertura” normativa. É o que ocorre, por exemplo, em um processo político democrático bem regulamentado. Neste caso, além da mera tolerância em relação a outras posições, também o direito a assumi-las e o respeito às minorias são os elementos que tornam aberto esse processo de tomada de decisões políticas. Outra coisa, no entanto, é que a própria Constituição, uma norma que contém critérios e prin-
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cípios últimos de legitimação e justificação da convivência, seja, sem mais nem menos, algo aberto.
De fato, a norma constitucional não pode ser entendida como algo fechado em um sen-tido absoluto. A Constituição deve ter condições de adaptar-se e desenvolver-se quando isso for necessário e se justificar. Mas tal conclusão não permite, voltando a velhas in-terpretações do poder constituinte, que tudo seja reformável, que tudo possa ser refor-mado sem observar as garantias necessárias para que tal reforma seja considerada legí-tima sob o ponto de vista de um constitucionalismo democrático.
Essa é a questão por trás da pergunta acerca de se o poder constituinte tem algum limite, e se este assume um sentido não apenas formal ou procedimental, mas também material. Nessa questão, parece evidente que, se partirmos das conquistas alcançadas pelo Estado Constitucional (jurídico e democrático), nelas vamos encontrar um “núcleo duro” que não admitiria reforma e que condicionaria os modos por meio dos quais se pode imple-mentar qualquer reforma constitucional.
É verdade que a história pode levar a rupturas e mudanças a partir da simples ação de um poder de fato. Trata-se de uma possibilidade sempre presente e que não se pode ig-norar. Porém, se isso vier a ocorrer, na realidade estaremos abandonando o terreno do Direito e do Estado Constitucional. Neste caso, não poderemos falar de um poder “cons-tituinte” e menos ainda de “reforma constitucional”, mas apenas da ação de um poder fático. Não atribuímos à eclosão de um golpe de Estado a condição de poder constituin-te. Aqui, também já não falamos de Constituição nem de Estado Constitucional.
Esse núcleo duro da Constituição inclui a legitimação produzida pelo reconhecimento da soberania popular e das liberdades fundamentais, sem deixar de lado os critérios fun-damentais da divisão de poderes e funções do Estado. Isso é aplicável também à pergun-ta de se essa importância crescente da jurisdição constitucional – contrapeso e instância de limitação – não teria como conseqüência, atualmente, o reforço da função do proces-so político em todos os seus níveis.
Para ser sincero, a questão não pode ser formulada como mera reação a uma situação que deve ser alterada, segundo o entendimento de alguns. Não tem sentido propor a compensação do que se tem como excesso em uma função com o reforço de outra. O caminho é defender a idéia de que todas as funções devem se adequar à sua tarefa cons-titucional. E isso pressupõe a análise de cada uma delas, tomando como referência o papel específico que lhes corresponde.
Particularmente, é natural que ante a falha dos mecanismos próprios do processo políti-co, ante a falha, por exemplo, da representação política, surja com freqüência a tentação de pretender compensá-la com a ampliação da função de outras instituições. Assim o-corre, por exemplo, quando se pretende atribuir à instância de controle de constituciona-lidade ou à figura do Chefe do Executivo essa função de motor das mudanças necessá-rias ou mesmo de ações de verdadeira engenharia constitucional. Porém, na verdade isso pode fazer com que tais instituições acabem dotadas de um excessivo fortalecimento das suas funções, que podem ser usadas, mais tarde, com uma finalidade distinta da inten-
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ção de promover as mudanças necessárias ou de levar adiante ações de engenharia cons-titucional.
Partindo do pressuposto presente na pergunta, o mais adequado seria revisar o funcio-namento e as garantias reais do processo político. Tal revisão teria como finalidade re-forçar os elementos através dos quais esse processo se desenvolve e se adequa à tarefa constitucional que lhe corresponde. É preciso ressaltar, sem deixar lugar a dúvidas, que só o processo político pode realizar a referida tarefa constitucional.
Agassiz Almeida Filho – A integração política buscada pela idéia contemporânea de Constituição é possível na sociedade global, cada vez mais complexa e tendente ao pluralismo, onde os espaços políticos, por exemplo, também são ocupados por estrangeiros e minorias dotadas de forte identidade cultural?
Rafael de Agapito Serrano – A princípio, creio que se pode dizer que a integração, não apenas política, mas também social, é possível sob qualquer circunstância. Como refle-xo da realidade atual, hoje é freqüente submeter à discussão dois termos que normal-mente se apresentam como contraditórios: identidade e globalização.
A identidade é uma tendência das pessoas, uma tendência claramente reducionista, atra-vés da qual elas se afirmam, buscando sua própria segurança em torno de um conjunto de fatores que aparece como aquilo que lhes é mais próprio. Certamente, toda identida-de é um sinal que leva à diferenciação em relação a outras identidades. O potencial con-flituoso desta tendência é algo que se tornou claro na história, sendo manejada como arma facilmente utilizada contra os outros, inclusive na vida quotidiana dos indivíduos.
A globalização, relacionada tanto a questões materiais como a elementos ligados ao pensamento e à comunicação, é, basicamente, uma abertura sem limites precisos em relação a fatores que influenciam a vida e o pensamento dos homens. Nesse sentido, ela pode gerar uma ruptura das identidades que possuíam estabilidade até então. E mais ainda, pode produzir a ruptura de toda possível identidade em geral.
Uma amostra da tensão entre esses dois termos aparece na atual discussão sobre a pos-sibilidade de se atribuir validade universal a “valores” ou princípios” dos Estados Cons-titucionais democráticos. A partir da Idade Moderna, esses valores ou princípios se de-senvolveram no mundo ocidental através de disputas teóricas e enfrentamentos reais. Entendidos simplesmente como valores materiais, como algo que se refere à interpreta-ção que normalmente se faz deles no contexto jurídico, político e social da época, tais princípios de fato não oferecem razões suficientes para dar uma resposta afirmativa a essa pretensão de validade universal. Por isso, muitos relativizam esses valores, tratan-do-os como princípios que não podem aspirar ou pretender nada além de um valor me-ramente convencional, estabelecido em um contexto determinado.
Na seqüência dessa discussão, talvez se pudesse perguntar se é possível recorrer à pró-pria concepção de Estado Constitucional como forma de assegurar sua identidade. Tal-vez se pudesse perguntar se no Estado Constitucional, e como fruto de uma longa evo-lução, realmente se chegou a um ponto em que é possível atribuir a seus valores uma
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forma não apenas definitiva, mas também “correta”. Pois bem, no que diz respeito a essa pretensão, e tomando como base a história conceitual do Estado Constitucional, creio que a resposta seria não. Afinal, não se pode construir uma definição “analitica-mente” fechada acerca da “identidade” do Estado Constitucional. Ao contrário, as dife-renças que podem ser vistas na concepção das liberdades fundamentais e na sua evolu-ção tornam clara a impossibilidade de atribuir plena “identidade” a esse conceito. Desde o início, o que se estabelece no Estado Constitucional é exatamente uma tensão entre uma série de pressupostos de caráter regulatório (liberdade, igualdade etc.), em sentido kantiano, e as fórmulas jurídicas com as quais se pretende concretizar esses pressupos-tos.
Assim ocorre, por exemplo, com os pressupostos da liberdade individual e sua concreti-zação através de fórmulas jurídicas históricas, por meio das quais se estabeleceu um modo específico de garantir seu respeito e sua delimitação. É claro que aqueles pressu-postos só podem tornar-se realidade por meio de fórmulas jurídicas concretas, e através de cada uma delas seu significado ganha mais conteúdo. No entanto, seu potencial regu-latório não se esgota com o conteúdo de um sistema normativo determinado. Tais pres-supostos se mantêm como o critério permanente com base no qual é preciso verificar se no conteúdo e na aplicação das fórmulas encontradas em cada momento realmente se projetam as legítimas aspirações da liberdade individual na vida social e histórica dos cidadãos.
Por isso, tomando por base esse exemplo, a meu juízo não se deve pensar sobre as pos-sibilidades da integração política tomando como referência questões de identidade. Também não se deve colocá-la em questão por causa de fatores internos ou externos, como a globalização. Desde a perspectiva do Estado Constitucional, e, em especial, a partir da concepção das liberdades fundamentais, a chave para a integração não está na identidade, mas no reconhecimento recíproco dessas liberdades entre os cidadãos. É verdade que tal idéia só se tornou clara na fase atual do constitucionalismo, apesar de já se fazer presente nas primeiras manifestações do Estado Constitucional.
Assim ocorre também com o pressuposto da democracia, que desponta nos primeiros momentos do Estado Constitucional, mas só é assegurado expressamente em fórmulas jurídicas a partir do início do século XIX. Ainda assim, é possível constatar que o po-tencial crítico do princípio democrático tem sido uma constante na história constitucio-nal, resistindo até mesmo às aplicações defeituosas que dele são feitas na realidade constitucional contemporânea.
A referência ao amplo pluralismo existente nas sociedades complexas atuais também aparece na pergunta como uma dificuldade para a integração social. Sem dúvida, a di-versidade de enfoques culturais e de subculturas existentes nessas sociedades é um fator cuja incidência não se situa apenas no nível dos fatos, projetando-se também nas cons-truções constitucionais. Na interpretação destas construções, o princípio do pluralismo assumiu uma posição de primazia, na medida em que se posiciona como um dos mais importantes valores do constitucionalismo posterior à Segunda Guerra Mundial.
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O respeito às diferenças, a atenção às minorias, as garantias de igualdade nos procedi-mentos, tudo isso aparece como o último baluarte da legitimação do Estado. Finalmente, o princípio do pluralismo se projeta como a base última do constitucionalismo atual. Para comprová-lo, bastaria recordar aqui como se diferenciavam os regimes políticos durante a Guerra Fria: mediante a oposição terminológica entre democracias “pluralis-tas” e democracias “populares”.
Nesta complexa realidade, resultante do amplo pluralismo social e político que a carac-teriza, surgem, pessoal e institucionalmente, questões e conflitos que não podem espe-rar: a guerra do véu, o respeito a convicções religiosas no âmbito sanitário, o alcance de uma possível auto-regulação das minorias etc. Essas questões certamente colocam à prova tanto as identidades como as possibilidades e limites da integração social. É um problema que não se pode analisar detalhadamente numa entrevista. Mas talvez se possa adiantar algo, esclarecendo a posição do princípio do pluralismo na sua relação com o princípio da liberdade individual e com o princípio democrático.
Na minha opinião, não se deve situar o princípio do pluralismo acima dos demais prin-cípios constitucionais. Na realidade, o pluralismo só se justifica, mais do que isso, só pode existir, quando estiver garantida a liberdade individual, ou seja, a capacidade de autodeterminação dos indivíduos. Sem uma liberdade de consciência devidamente asse-gurada, o pluralismo em sentido constitucional não tem como ocorrer. Isto quer dizer, por exemplo, que grupos identitários particulares não devem ter a capacidade de condi-cionar seus próprios membros contra a liberdade destes últimos. Situação distinta ocor-reria no caso de grupos organizados em torno da seus próprios interesses ou da simples busca do poder. Os grupos que podem integrar esse tipo especificamente “constitucio-nal” de “pluralismo” têm sua base, conseqüentemente, em uma possível decisão indivi-dual livre. Nesse sentido, a questão consistiria em considerar que a liberdade individual está na base, que ela é o ponto de partida.
Pois bem, gostaria de acrescentar algo mais. Entre ambos os princípios (liberdade indi-vidual e pluralismo), pode-se descobrir uma relação de condicionamento recíproco. O princípio da liberdade individual – e o princípio democrático, conseqüentemente – é a única base capaz de justificar a existência e o funcionamento desse pluralismo, dessa diversidade de grupos. No entanto, ao mesmo tempo o princípio do pluralismo impõe um limite àquele, uma vez que o respeito por outras opções impede que o princípio de-mocrático chegue a ser utilizado de forma “autoritária”, como simples imposição majo-ritária ou exclusão do diferente. Sendo assim, determina fundamentalmente que se res-peite as opções das outras pessoas, e que estas possam expressá-las e defendê-las.
Por isso, com base num contexto tão complexo pode-se afirmar que a integração social suscita nas formações sociais dos dias de hoje exigências especialmente difíceis, tanto a nível pessoal como a nível institucional. A causa disso é o fato de se contar com um nível mais elevado de liberdade, o que, logicamente, requer um esforço suplementar para alcançar e manter um equilíbrio pessoal e social. Essa maior dificuldade, hoje ge-neralizada, projeta-se como uma espécie de dependência dos cidadãos em relação às instituições. Através da atuação dessas instituições, deve ser possível estabelecer crité-
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rios claros e justificados de modo geral no plano da integração social. Além disso, por meio delas os cidadãos devem ter a segurança de que tais critérios também são aplica-dos de modo geral na sociedade.
Agassiz Almeida Filho – Na sua opinião, quais as principais barreiras a serem ven-cidas pela integração constitucional da União Européia?
Rafael de Agapito Serrano – Perguntar pelas barreiras que precisam ser superadas por uma integração constitucional da União Européia pressupõe conhecer o fim que se pre-tendeu alcançar com esse processo. E esta não é uma questão simples, colocada com clareza desde o princípio. Os passos sucessivos dessa integração sempre foram entendi-dos como parte de um processo, mas acho que nunca se definiu expressamente qual deveria ser a sua linha de chegada. Ao longo de tal processo, e a partir de formulações pragmáticas, ocorreu um progresso na colaboração que produziu o elevado nível de in-tegração alcançado nos dias de hoje. Com o “modesto” Tratado de Lisboa, na atualidade essa idéia de integração deu origem à criação do Alto Comissionado para assuntos exte-riores, à criação de bases para uma Presidência mais estável ou ao incremento das ques-tões que podem ser decididas por maioria.
O déficit democrático da União é uma velha crítica. Esse déficit se observa, de forma atenuada, quando se constata a “distância” e o desconhecimento por parte dos cidadãos acerca do funcionamento e das decisões das instituições européias, algumas delas de grande importância pelo efeito que produzem na vida das pessoas. Durante um longo trecho do processo, a participação dos Estados foi compreendida como uma atividade ligada às relações exteriores. E isso deu a entender que a ação havia se concentrado fun-damentalmente no Poder Executivo, quer dizer, no governo dos Estados.
A intensificação da ação das instituições européias fez com que se colocasse abertamen-te a questão do caráter democrático do seu funcionamento (resolução do BVG sobre o Tratado de Maastricht), exigindo-se, assim, uma maior participação da representação político-parlamentar dos Estados na estruturação da posição nacional e na tomada de decisões conjuntas. A partir daí, foram desenvolvidas e estabelecidas em diferentes Es-tados as exigências e as formas específicas através das quais o governo deve proporcio-nar uma informação adequada e suficiente aos cidadãos, assim como uma maior partici-pação das instituições democrático-representativas dos Estados.
Nos últimos anos, têm havido colocações mais explícitas acerca de como deveria confi-gurar-se essa singular organização internacional. Basta recordar aqui a polêmica propos-ta do Ministro das Relações Exteriores da Alemanha (Joschka Fischer) e a posição da França em relação a ela. A proposta do Ministro alemão tratava da possibilidade de se estruturar o funcionamento da União Européia nos moldes de um Estado federal. Essa proposta fundava-se na adoção de uma forma de organização que correspondia clara-mente a elementos próprios de um Estado Constitucional. Afinal, essa estrutura federal, com a representação dos Estados em um “senado”, redundaria em estabelecer para a União a estrutura clássica da divisão dos poderes, podendo atribuir, com isso, uma fun-ção normativa mais clara e explícita ao Parlamento Europeu. Tudo ficou nisso, em uma
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polêmica. Mas ela teve sua importância, pois refletia a existência de uma clara preocu-pação com relação às garantias do funcionamento da União.
A proposta do Tratado para uma Constituição européia foi apresentada pouco depois. Nela se formulava expressamente a pretensão de que o Tratado correspondesse à forma e ao conteúdo inerentes às Constituições, tal como entendemos esse termo, ainda vincu-lado aos Estados. Tal proposta, na realidade, era mais nominal ou voluntarista do que algo realmente concreto. Afinal, apesar de intensificar a posição jurídica dos direitos fundamentais, de fato sua parte orgânica mantinha-se ligada à posição especial dos Es-tados na configuração e funcionamento da União. Como se sabe, a celebração desse Tratado nunca chegou a ocorrer.
Ao longo dessa seqüência de fatos, surgiu a possibilidade de se ampliar a União, de mo-do a abarcar os antigos Estados do Leste. Para dizer a verdade, na época havia uma níti-da consciência de que a ampliação representava uma alternativa à intensificação ou a-profundamento da estrutura interna e do funcionamento das instituições européias. A decisão a favor da ampliação, baseada em motivos de oportunidade política e econômi-ca, acabou gerando o abandono dessas pretensões mais amplas, voltando-se a falar, hoje em dia, em uma Europa de duas velocidades.
Aquela crítica a respeito da distância e do desconhecimento das decisões e do funcio-namento das instituições da União Européia ganha força devido à escassa participação nas eleições que cada Estado realiza para o Parlamento Europeu. Além disso, é impor-tante acrescentar que boa parte da responsabilidade por essa situação deve ser atribuída aos próprios Estados, cujas instituições não cumprem de forma efetiva sua obrigação de dar sentido e efetividade a essa participação cidadã.
De qualquer forma, é importante recordar que a singularidade dessa organização inter-nacional é resultado direto da sua intensa capacidade normativa, da sua capacidade de criar Direito vinculante para os seus membros, com base nas competências transferidas pelos Estados. Por isso, não chama especial atenção o fato de que se mantenham sempre vivas essas exigências de legitimação e de justificação do Direito, desenvolvidas, histó-rica e conceitualmente, a partir do Estado Constitucional, do Direito Constitucional, em suma. Mantém-se firme, pois, a questão de buscar fórmulas, originais ou não, que dêem resposta a essas pretensões de fundamentação surgidas com o constitucionalismo.
Agassiz Almeida Filho – Quais devem ser os limites para a atuação da jurisdição constitucional no constitucionalismo atual? As fórmulas clássicas criadas por John Marshall e Hans Kelsen ainda são suficientes para legitimar o exercício desse tipo de jurisdição?
Rafael de Agapito Serrano – Desde o ponto de vista da legitimação, ambos os autores continuam sendo uma evidente referência em termos de justificação da jurisdição cons-titucional. Em momentos e contextos distintos, ambos se apóiam em algo que hoje é indiscutível, e que deve ser considerado como uma conquista em relação à qual não se deve retroceder: a caracterização da Constituição como norma jurídica, com tudo o que isso implica, devido à sua condição de “Direito” em sentido estrito e à superação da
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concepção meramente “política” da norma constitucional. Dito de outro modo, trata-se da superação do significado retórico ou da vinculação da Constituição a equilíbrios con-junturais entre as forças políticas da sociedade. Problema distinto é a contribuição de Kelsen e Marshall acerca da delimitação do exercício da jurisdição constitucional.
No que se refere à contribuição de Hans Kelsen, não há duvida de que continua tendo plena justificação sua opção de atribuir à jurisdição constitucional um caráter iminente-mente jurídico, tanto pelo fato de esta função ser atribuída a um órgão com a forma de um tribunal, como pelo procedimento que se deve utilizar para construir as suas deci-sões. Isso torna-se mais claro quando se recorda a sua discussão com Carl Schmitt, para quem o guardião da Constituição tem que ser uma instância política, devendo suas deci-sões configurar-se, sem deixar lugar a dúvidas, como a decisão de uma vontade política. Para Schmitt, o exercício da jurisdição constitucional precisa projetar-se como uma de-cisão política, porque, no final das contas, nos casos em que o Estado atua ou decide para além da Constituição, logicamente não se pode encontrar na norma critérios e fun-damentos para decidir. A decisão é simplesmente o desfecho institucionalizado de um conflito que não tem resposta nem lugar no ordenamento constitucional.
Porém, a verdade é que na polêmica entre Kelsen e Schmitt se pode encontrar argumen-tos de relevo em ambos os lados, argumentos que permitem atribuir a cada um deles uma parcela de razão. Se nos situarmos no âmbito de um Estado Constitucional como o atual, as duas propostas, voltadas para uma solução jurídica ou uma solução política, têm sentido no âmbito do ordenamento constitucional.
Hoje em dia, resultado das propostas de Kelsen e Schmitt, duas instituições e procedi-mentos se projetam na ordem constitucional de praticamente todos os países, ainda que essas instituições e procedimentos estejam ligados, sem nenhuma dúvida, a pressupos-tos diferentes. Por um lado, encontramos a instituição do controle de constitucionalida-de, cujo objetivo é tornar efetiva a vigência da norma jurídico-constitucional frente a pressupostos (oriundos de normas ou de atos do Estado ou de particulares) que a con-tradigam. Por outro lado, encontramos também a instituição e os procedimentos da re-forma constitucional, que têm a função de tornar possíveis, com base em determinadas garantias, a atualização e a adequação da norma constitucional àquelas pretensões gerais justificadas a partir da vontade popular. As duas instituições se apresentam como fun-ções de natureza diferente: jurídica e política.
A função de controle de constitucionalidade situa-se especificamente no plano da apli-cação do Direito. Nessa medida, é algo conceitualmente diferente da criação do Direito, que só se torna legítima com a intervenção da vontade popular. Na prática, realmente pode ser difícil distinguir quando se está “concretizando” o conteúdo dos preceitos constitucionais e quando se está criando conteúdos novos. Mas, de qualquer forma, pelo menos no terreno dos conceitos e categorias jurídicas, a diferença entre esses dois mo-mentos deve ser mantida, servindo de guia para a interpretação constitucional. Sendo assim, no constitucionalismo atual a caracterização de Kelsen do controle de constitu-cionalidade como função “negativa” continua se justificando.
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No entanto, a explicação do exercício dessa função por Kelsen como mera comparação entre normas já não é adequada para tornar claros os seus limites e o seu alcance. A po-sição de Kelsen é decorrência da sua concepção normativista do Direito. A configuração atual do ordenamento jurídico-constitucional contém um elemento mais: a eficácia jurí-dica direta dos preceitos constitucionais. Esta obrigação de eficácia conduz a um con-ceito de aplicação mais amplo, pois abrange expressamente a incorporação da obrigação de observar a realidade social na hora de avaliar uma possível contradição com a norma constitucional.
Daí que na aplicação da norma constitucional tenha sido necessário desenvolver novos padrões para a formação da decisão. Não apenas a referência à vigência real da norma constitucional, mas também a sua complexidade (a multifuncionalidade dos direitos e a possibilidade de conflitos entre as posições jurídicas reconhecidas), justificam essa ne-cessidade. Basta mencionar aqui a “concordância prática” proposta por Konrad Hesse nos primeiros momentos de aplicação da Constituição; ou o desenvolvimento posterior dessa idéia na direção do “princípio da proporcionalidade”, no caso de Robert Alexy, onde estão em jogo novos aspectos, como a justificação da limitação (no caso de nor-mas limitadoras) ou o equilíbrio entre direitos e a possível preferência relativa (no caso de conflito entre esses direitos).
Contudo, em último caso, continua atual a delimitação proposta por Kelsen, que destaca o caráter de “aplicação” do controle de constitucionalidade. Para tanto, este parte do necessário respeito às outras funções superiores do Estado Constitucional.
Agassiz Almeida Filho – Os princípios constitucionais e sua abertura normativa atentam contra a lógica democrática por trás do Estado Constitucional contempo-râneo?
Rafael de Agapito Serrano – Parece-me uma afirmação precipitada aceitar, sem mais nem menos, a abertura normativa dos princípios constitucionais. Creio que seria preciso estabelecer com clareza a diferença entre a idéia de que eles são algo aberto, sem limites para a incorporação de conteúdos que podem surgir a partir da sociedade ou das pró-prias instituições do Estado, e a idéia de que, em razão do seu significado mais geral e da sua formulação mais abstrata, quando comparados às normas-regra, seu significado possa ser concretizado frente aos casos e pressupostos novos que surgem por meio da aplicação do Direito.
A ampla incorporação de princípios na ordem constitucional é uma característica espe-cífica do constitucionalismo atual, mas não é nenhuma novidade para a perspectiva téc-nico-jurídica de um ordenamento jurídico. Realmente, a localização dos princípios na norma suprema desse ordenamento suscita maiores exigências para sua interpretação. Na realidade, porém, o resultado disso consiste em estabelecer uma diferenciação entre valores e princípios. Estes últimos possuem um significado mais preciso, porque estão situados dentro de uma contextura jurídica (constitucional), cuja interconexão lhes atri-bui limites mais exatos. No que diz respeito aos valores, no entanto, continua em vigor, talvez de forma inadvertida, a concepção de Smend, que os vê como algo inerente à
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sociedade. E não se pode esquecer que para Smend a norma constitucional é apenas um dos elementos, entre outros, que contribuem para uma integração social sempre dinâmi-ca e aberta.
A diferenciação entre ambas as categorias deve ser clara. Mesmo quando se utiliza o conceito de valor dentro de um contexto constitucional, como ocorre no art. 1º da Cons-tituição espanhola, os valores devem ser entendidos como componentes e parte inte-grante de um ordenamento jurídico, não como algo que tem sua fonte na sociedade e que está aberto à sua influência. É através da norma jurídico-constitucional que esses “valores superiores” precisam ser interpretados. Além disso, não parece lógico aceitar que uma norma jurídica seja compreendida como algo aberto, pois, neste caso, ela se afastaria da sua natureza de norma jurídica.
Os princípios jurídico-constitucionais, por sua vez, são categorias jurídicas. Como tal, devem ser interpretadas no âmbito do ordenamento jurídico-constitucional, com base nos limites operativos que derivam do seu conjunto normativo. Os princípios são nor-mas de segundo nível, como se diz, aplicadas na interpretação de outras normas. Isso não quer dizer, todavia, que eles não são nem podem ser alheios à necessidade de inter-pretá-los de modo a preservar a sua coerência com outros princípios, inclusive com o prescrito explicitamente nas normas-regra que compõem a Constituição. Entre os prin-cípios e as regras, dá-se uma relação complexa, de mútua determinação e delimitação de significado.
Entendo que, conceitualmente, o principio da segurança jurídica não pode ser excluído do âmbito do Direito Constitucional, ainda que ele de fato enfrente maiores dificuldades práticas para sua realização nesse contexto. Esse princípio deve continuar a ser um crité-rio capaz de orientar a atividade de garantir a vigência da Constituição. Como indiquei em outra das respostas, isso é exatamente o que assegura o respeito à legitimação da norma suprema, porque, neste caso, todo desenvolvimento “aberto” terá que buscar o caminho das formas jurídico-democráticas de reforma da Constituição.
Agassiz Almeida Filho – Qual o papel da proporcionalidade no processo de inter-pretação dos princípios constitucionais?
Rafael de Agapito Serrano – Deixando de lado todo o complexo emaranhado técnico deste princípio da interpretação, talvez seja possível concentrar seu modo de atuar em três dimensões:
Em primeiro lugar, está a introdução de garantias para a limitação e o controle jurídico da intervenção do Estado. Talvez seja melhor expressar essa idéia ressaltando que o reforço da exigência de justificação da necessidade de mais intervenção estatal no âmbi-to das liberdades fundamentais busca o seguinte: controlar e alcançar um equilíbrio ade-quado entre as duas obrigações que a Constituição impõe ao Estado atual. Trata-se da obrigação negativa de não interferir no exercício dos direitos e da obrigação positiva de oferecer os meios para que esse exercício possa ser efetivo por parte dos cidadãos.
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Em segundo lugar, destaca-se também a questão de proteger, através da ponderação, as posições juridicamente relevantes presentes nos casos concretos de conflito entre direi-tos fundamentais. Konrad Hesse propôs, com seu critério da “concordância prática”, que, em caso de conflito entre liberdades fundamentais, nenhuma delas poderia resultar vazia ou sem proteção. Trata-se aqui, portanto, de garantir a vigência efetiva das distin-tas posições jurídico-fundamentais reconhecidas constitucionalmente, observando, além disso, as circunstâncias cuja relevância constitucional permita modular e calibrar o equi-líbrio dos bens jurídicos em conflito. Bom exemplo disso seria o equilíbrio entre a li-berdade de imprensa e o direito à honra e à privacidade, que dependeria da presença de um fator constitucionalmente relevante, como a condição pública da pessoa afetada.
Finalmente, pode-se destacar uma conseqüência, talvez indireta – o que não retira a sua importância –, da aplicação do princípio da proporcionalidade. A partir da sua aplica-ção, torna-se possível trazer à luz a inter-relação entre as diferentes liberdades funda-mentais. No constitucionalismo contemporâneo, estas já não podem ser entendidas co-mo direitos em sentido absoluto, como ocorria, em grande medida, no constitucionalis-mo liberal. Hoje em dia, as mencionadas liberdades devem ser compreendidas como direitos limitados por outros direitos reconhecidos, e, também, pelos direitos das pesso-as envolvidas no caso. Além disso, o complexo emaranhado de liberdades reconhecidas leva necessariamente a constatar a conexão que existe entre elas. Isso permite descobrir, por exemplo, na linha do que demonstrou Marta León, a vinculação entre os distintos componentes das liberdades, com o fim de ampliar a sua proteção. Segundo a interpre-tação feita na obra de Marta León, quando se esmiuça o conteúdo de direitos inicial-mente tidos como “direitos sociais” – que dependem, portanto, da atuação do legislador para ter eficácia jurídica –, podem sair à luz componentes que, por sua vinculação a direitos fundamentais em sentido estrito, precisariam gozar de eficácia direta e máxima proteção.
Agassiz Almeida Filho – Na sua opinião, deve haver um método específico para a interpretação das normas constitucionais?
Rafael de Agapito Serrano – Qualquer método não passa de um conjunto de regras e procedimentos que procuram assegurar o conhecimento objetivo de algo. Portanto, o método depende do objeto que se pretende conhecer. No caso do método jurídico, trata-se da compreensão de textos, da análise de elementos fáticos com o fim de reconhecer os aspectos que possuem relevância jurídica; trata-se ainda da função específica de apli-cação desse conhecimento ou compreensão dos textos para resolver conflitos entre pre-tensões que se apresentam como sendo juridicamente fundadas.
Na atualidade, onde impera o constitucionalismo posterior à Segunda Guerra Mundial, o que realmente caracteriza o objeto do conhecimento jurídico é um elemento chave para as questões metodológicas carentes de resolução: a concepção generalizada da Constitu-ição como norma jurídica. A Constituição é hoje reconhecida, de forma generalizada, como uma norma jurídica, especificamente como a norma suprema do ordenamento jurídico. É a norma que, desde um ponto de vista formal, estabelece as condições de validade do Direito. Ao mesmo tempo, sob uma ótica material, a Constituição é a norma
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que contém as condições da justificação desse Direito. Por isso, pode-se dizer que sua natureza no pensamento constitucional contemporâneo não decorre só da equiparação com qualquer outra norma jurídica. Além de compartilhar características com as normas jurídicas em geral, ela também é responsável pela determinação das condições por trás da legitimação e da justificação do Direito vigente. Nesse sentido, pode-se dizer que a Constituição contemporânea tem uma dupla natureza: é norma jurídica e norma demo-crática.
Desde o início do Estado Constitucional, o objeto do Direito Constitucional tem sido entendido através de uma relação de tensão entre poder e liberdade. De um lado, está a necessidade de uma instância de poder, de uma autoridade comum a toda a comunidade, com o fim de que se possa chegar a decisões e normas comuns e de que estas se apli-quem eficazmente; de outro, o reconhecimento de pretensões de liberdade por parte dos cidadãos. Trata-se de uma relação, pois, entre o reconhecimento e a garantia da liberda-de individual e a criação de uma instância de poder que atue com base em critérios sufi-cientemente justificados. Nessa medida, tal relação deve tornar possível a cooperação entre os cidadãos e o controle ou redução do poder, do seu abuso, tanto por parte do Estado como das instâncias sociais que ocupem alguma posição de poder.
No início, a articulação coerente entre ambos os aspectos foi a tarefa, ou a pergunta, melhor dizendo, a que precisou responder o Direito Constitucional através das suas construções jurídicas. Para tanto, ele atuou através do reconhecimento de marcos jurídi-cos que incluem liberdades fundamentais, através do reconhecimento de princípios de organização do poder político e através das garantias que lhes eram correspondentes. Trata-se de marcos que se tornaram mais amplos e complexos por meio da experiência constitucional.
A mudança trazida por essa nova concepção de Constituição pressupõe que esta é a norma suprema. E mais, que ela alcança, formal e materialmente, todo o resto do orde-namento jurídico, condicionando sua eficácia e aplicação. Isso é ilustrado graficamente com a expressão feliz do “efeito de irradiação” da norma constitucional sobre o orde-namento jurídico.
Tudo isso pressupõe uma ampliação do material normativo que se deve levar em conta na hora de interpretar e aplicar o Direito, as normas jurídicas vigentes. Este fato passa a ter uma relevância especial no âmbito do modelo ou sistema jurídico da Europa ociden-tal. Aqui, tradicionalmente, a aplicação do Direito tinha como limite o que era estabele-cido pelo legislador. Quer dizer, a matéria constitucional se mantinha fora do ordena-mento jurídico, não podendo, por causa disso, ser aplicada diretamente. Em especial no modelo europeu continental, essa mudança dá origem a uma ampliação da capacidade e do alcance da interpretação no processo de aplicação judicial do Direito.
Também exige, contudo, uma mudança no sentido de que a aplicação do Direito, basea-da na existência jurídico-constitucional da eficácia da Constituição, não pode ocorrer apenas no terreno jurídico das normas. Também precisa incorporar uma cuidadosa aná-lise dos pressupostos, da realidade social, com o fim de assegurar a eficácia e a aplica-
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ção das normas em relação a essa realidade. Daí a relevância dos casos – da jurispru-dência – e da aproximação dos dois velhos modelos, o anglo-saxônico e o continental europeu.
Pois bem, essas mudanças não podem ser entendidas como um salto na direção de um novo paradigma, algo que exija uma nova tecnologia jurídica. Não pode basear-se no abandono ou esquecimento do enfoque e dos pilares sobre os quais se constrói o método jurídico em períodos anteriores. Às vezes se pensa, de forma simplista, que nessa fase a tarefa de aplicação se podia dar por encerrada através do princípio da “subsunção”. Po-rém, na realidade essa tarefa nunca foi cumprida assim. No mundo do Direito e da sua aplicação, jamais houve lugar para uma interpretação reduzida ao automatismo. A “in-terpretação” sempre existiu. Daí a necessidade e a importância de se elaborar um méto-do jurídico.
Que eu saiba, nenhuma instância de controle de constitucionalidade se declarou partidá-ria de “um” determinado método de interpretação. Na verdade, essas instâncias atuam por meio do uso de diversos cânones interpretativos, previamente estabelecidos, sem deixar de acrescentar à sua atuação algumas construções típicas do Direito Constitucio-nal. Com isso, tais instâncias procuram atender às novas exigências de interpretação e aplicação desse complexo material-normativo, a exemplo do princípio da proporcionali-dade. Uma clara e profunda exposição do debate e desenvolvimento dessas questões metodológicas e dos princípios a elas aplicáveis se encontra no capítulo inicial do Curso de Direito Constitucional, de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco.
Na atualidade, creio que faz sentido ressaltar a relevância de alguns desses cânones, a exemplo da literalidade do texto e da interpretação sistemática. Nos passos de Konrad Hesse, toda interpretação deve cessar quando o texto não suscite dúvidas ou alternati-vas, ressaltando-se, de qualquer forma, que uma interpretação contrária à expressão lite-ral da lei não tem cabimento. Pode-se pensar que esses casos não são comuns. Porém, independentemente disso, a exigência da interpretação literal coloca em primeiro plano a necessidade de um bom conhecimento da linguagem, necessidade que não se apresen-ta apenas para o jurista, mas também para o legislador. A interpretação sistemática, por sua vez, oferece não apenas um possível recurso para tornar claro o sentido dos precei-tos concretos, considerados a partir de um contexto jurídico mais amplo, mas também um limite, uma clara delimitação do alcance da interpretação feita com base nesse con-texto.
Apesar das mudanças mencionadas, entendo que continuam vigentes as aspirações fun-damentais que na época deram origem à elaboração de uma metodologia jurídica. A questão atual de como fazer com que o método jurídico mantenha sua capacidade para dar resposta aos novos problemas jurídicos não pode ser compreendida como a necessi-dade de criar uma nova metodologia jurídica. O desenvolvimento das técnicas de inter-pretação que se façam necessárias deve permanecer nos marcos das pretensões que ori-entaram a elaboração e a introdução de uma disciplina metódica no mundo dos operado-res jurídicos.
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Em definitivo, trata-se da pretensão de obter uma autolimitação por parte daqueles que lidam com o Direito. Afinal, nossa área de estudos se dedica a oferecer uma interpreta-ção “objetiva” dos textos, vinculada a estes tal como eles se apresentam, dando origem a uma interpretação que exclua a utilização de critérios subjetivos. A idéia é oferecer uma interpretação e uma aplicação “homogêneas” dos textos, capazes de assegurar uma vi-gência contínua do Direito – nos planos horizontal e vertical –, evitando, com isso, a arbitrariedade na resolução dos casos concretos.
De fato, situar essas pretensões como base do método jurídico é algo que também está ligado, ainda que indiretamente, a outra exigência do Estado Constitucional. Ela consis-te em considerar que a aplicação objetiva e homogênea do Direito é o suporte a partir do qual se pode verificar a adequação e generalidade desse Direito. Tal aplicação, quando se fizer necessário, também é o ponto de partida para que sua modificação em sede polí-tica tenha um suporte concreto.
Agassiz Almeida Filho – A sociedade brasileira enfrenta graves estrangulamentos no plano da realização dos direitos fundamentais, o que, muitas vezes, contribui para que a participação política seja irregular e descomprometida com os valores do Estado Constitucional. É possível conciliar essas dificuldades enfrentadas por grande parte do povo brasileiro com a mensagem normativa do princípio demo-crático?
Rafael de Agapito Serrano – A pergunta guarda relação, em um primeiro momento, com a confiança nas instituições do Estado Constitucional. Apenas quando os cidadãos pos-suem um grau aceitável de confiança em relação a elas são capazes de admitir as relati-vas insuficiências que daí podem surgir. Na realidade, creio que o ceticismo não se apli-ca diretamente ao princípio democrático, salvo quando ele não cumpre sua função devi-do à ausência de outros mecanismos e garantias do Estado Constitucional.
Mas neste caso a pergunta conduz a algo mais profundo, que se torna claro quando se observa a história do Estado e do Direito Constitucional. Essa confiança certamente não pode ser entendida como um cheque em branco; também não pode se apoiar em meras considerações morais, que conduzam ao abandono dos próprios interesses. No terreno do Estado Constitucional, pode-se trazer à colação a máxima de que “apenas o poder freia o poder”. Na realidade, essa máxima é mais profunda do que normalmente se pen-sa. A idéia não se refere apenas ao equilíbrio ou contrapeso entre os poderes do Estado. Desde a perspectiva realista de Montesquieu, ela abarca também os poderes e forças sociais que existem na sociedade.
Seguindo o raciocínio de Montesquieu, todo poder, resida na esfera pública ou privada, só será objeto de limitação ou redução se houver outro poder que se oponha a ele, e mais, que tenha força suficiente para colocar em prática os mecanismos necessários para limitar seus possíveis abusos. Isso exige a união (a fraternidade no sentido da interpre-tação de E. Bloch sobre a tricolor: igualdade, liberdade e fraternidade) entre aqueles que consideram necessárias essas fórmulas, o que se justifica pelo fato de estas corresponde-rem a necessidades ou interesses gerais. Mas também exige, nos passos de Montesqui-
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eu, que o estabelecimento dessas formas de solucionar os problemas ou conflitos deve ser resultado de um acordo ou de um compromisso capaz de desenvolver-se paulatina-mente, passo a passo. Isso deve ocorrer, pelo menos, sem que seja uma imposição de fato que ignore por inteiro a outra força social.
Certamente, em último caso tudo isso pressupõe aceitar que as fórmulas do Direito constituem um instrumental adequado para resolver os conflitos sociais e políticos. E isso é algo que em determinadas situações não é fácil. De fato, a história está repleta de posicionamentos que entenderam e utilizaram o Direito como um mero instrumento do poder estabelecido. Não se pode ignorar essa realidade. Mas também é verdade que o Direito, por meio do Direito Constitucional, particularmente, descobriu, incorporou e desenvolveu “possibilidades” que podem ser utilizadas na sua aplicação e justificação geral. Tais possibilidades não se encontram em nenhuma outra forma de dirigir o pro-cesso social utilizada na história, a exemplo da mera apelação à moral, do conhecimento crítico ou da técnica. O Direito atua no terreno dos interesses e do poder, e para que algo seja Direito, é preciso acrescentar a esse algo a existência de meios para fazê-lo cumprir.
O desenvolvimento do Direito, a “luta pelo Direito” (Ihering), pressupõe duas coisas. Em primeiro lugar, está a coesão em torno dos interesses passíveis de justificação geral, como a base da força ou poder para defender e exigir, com eficácia, o estabelecimento de novas fórmulas jurídicas de proteção e garantia. Depois, a consciência de que esse desenvolvimento não pode ser implementado como um salto no escuro, destruindo todo o tecido social. Ele deve ocorrer com base em acordos que mantenham aberta a relação entre esse poder geral e os poderes particulares existentes na sociedade. Não se pode esquecer que atuamos em um terreno histórico. Também se deve recordar que as catego-rias do Direito e as instituições do Estado têm razão de ser porque sempre poderão apa-recer novas necessidades, que devem ser resolvidas por meio de critérios justificados de modo geral. Nessa linha, também podem despontar novas formas de poder que amea-cem ou reduzam o nível de liberdade geral alcançado em um determinado momento.
Agassiz Almeida Filho – No Estado Constitucional, a participação política se limita ao processo eleitoral? Como ela deve ocorrer para que o sistema representativo desempenhe as suas funções adequadamente?
Rafael de Agapito Serrano – É evidente que a participação política dos cidadãos não pode ser entendida como algo limitado apenas ao ato formal de emissão do voto no pro-cesso eleitoral. A participação democrática é mais complexa do que isso. Desde os pri-meiros esforços na defesa da participação política, esta nunca se reduziu ao ato que re-flete pontualmente a mera vontade fática dos votantes, tornando-se obrigatória, também, a necessidade de justificar essa participação. Aí entram em jogo, por um lado, a expres-são dos interesses de cada um dos membros da comunidade, e, por outro, a necessidade de que o cidadão considere também o interesse geral da sociedade no momento de vo-tar, assumindo um posicionamento com ele compatível. Sem dúvida, esta dupla dimen-são da participação representa uma concepção mais complexa, ao mesmo tempo em que podemos percebê-la como algo real na ação política do cidadão. Nas eleições, o cidadão
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valora, além dos seus interesses, o significado das diversas opções para a sociedade co-mo um todo.
Por isso, a participação política não pode limitar-se ao ato de votar, e nem sequer ao processo eleitoral em sentido estrito. Uma correta configuração da participação política exige determinadas condições para que se possa considerá-la realmente democrática. Tais condições se referem, em um primeiro momento, ao fato de a participação ser re-almente livre, o que pressupõe que o cidadão deve dispor de liberdades fundamentais como garantias para a livre formação da sua vontade. Em um segundo momento, tam-bém são necessárias condições ligadas à posse de informações suficientes para a forma-ção de um juízo adequado.
Isso nos leva à necessidade da liberdade de expressão, em todas as suas manifestações, assim como ao controle e transparência do funcionamento das instituições do Estado. De outra forma, haveria de se dar razão a Rousseau, quando, observando a sua própria realidade histórica, com ceticismo, dizia que os ingleses pensavam que eram livres, mas na verdade sua liberdade só se manifestava no momento de designar os representantes. Passada essa fase, na verdade eram estes os que participam. A propósito, é preciso dar razão a Rousseau quando ele afirma que a soberania é indivisível e indelegável.
A configuração da participação política através de representantes é algo que também se coloca e se discute nas fases iniciais do Estado Constitucional. Frente ao ceticismo de Rousseau acerca da democracia indireta, a maioria dos defensores do Estado Constitu-cional (Burke, Sieyès, Hamilton) crê que a democracia representativa não é um mal menor, inevitável pelas dimensões do território e da população dos Estados Nacionais, mas realmente uma alternativa “melhor” do que a democracia direta. Seus argumentos se apóiam no fato de a democracia indireta correr menos perigo de sucumbir ante de-formações demagógicas típicas da política e no fato de a eleição de representantes para o parlamento tornar possível uma análise mais detalhada e rigorosa das questões políti-cas que venham a ser levantadas. Isso pode ser verdade, sempre e quando o exercício da representação política pelos representantes se ajuste à legitimação e à função constitu-cional que lhe corresponde no Estado Constitucional.
Com base na minha pouca experiência acerca da realidade política e constitucional bra-sileira, pude constatar alguma que outra crítica ao funcionamento da representação polí-tica, que, curiosamente, reflete o lado oposto da crítica que se faz aqui na Espanha. No Brasil, ao que parece, condena-se a escassa fidelidade dos parlamentares à formação política a que pertencem e pela qual foram eleitos. Entre nós, diferentemente, critica-se a excessiva dependência dos parlamentares em relação ao grupo político que respalda sua atuação. Ambas as situações refletem claros defeitos da representação política. No caso brasileiro, trata-se da liberdade arbitrária no exercício da função; na Espanha, de uma vinculação e dependência extremas do representante em relação ao seu próprio grupo político. Na realidade, porém, o problema que se apresenta nos dois países é o mesmo: a independência dos representantes em relação aos seus eleitores.
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Uma compreensão constitucional adequada da figura da representação política não pode funcionar sem qualquer um dos dois aspectos que parecem convergir na representação: a vinculação ao mandante e a liberdade de juízo e decisão do representante no parla-mento. Ambas se projetam na história dos conceitos constitucionais por intermédio das figuras do mandato imperativo e do mandato representativo. Mas nenhuma das duas tem condições por si só de definir a função constitucional do representante. De fato, o signi-ficado constitucional dessa função política implica a combinação de elementos de am-bas as formas de mandato.
Por um lado, a vinculação aos representados é necessária, pois só através dela podem se fazer presentes no parlamento, neste órgão especializado na função de elaborar normas de caráter geral, os diversos interesses dos cidadãos. Apenas por meio da vinculação entre representantes e representados consegue chegar ao parlamento uma “informação democrática” acerca dos interesses existentes na sociedade. E só assim, com base no conhecimento geral dos interesses trazidos por todos os representantes, podem os par-lamentares ponderar acerca das suas decisões e acordos. Não se pode qualificar de “re-presentante” quem atua com plena autonomia em relação ao seu representado.
Por outro lado, no entanto, também é necessária uma certa liberdade de decisão para o parlamentar. Do contrário, se ele estivesse rigidamente vinculado às instruções do seu mandante, não seria possível discutir e deliberar sobre as questões políticas levadas ao parlamento. Neste caso, definitivamente, a assembléia parlamentar não teria sentido, porque também não poderia chegar a nenhum consenso. A expressão “uma certa liber-dade” reflete os limites da autonomia da decisão do parlamentar, que, sem dúvida, não podem ser os seus próprios interesses. Esses limites são aqueles estabelecidos a partir da responsabilidade ante seus eleitores e da obrigação do parlamentar de defender os inte-resses que representa.
Sou consciente de que essas afirmações podem parecer a expressão da crença em uma “democracia ideal”, pouco relacionada com a realidade, em todos os sentidos. Mas a questão aqui não é evocar um tipo ideal, nos termos de Max Weber. Trata-se de uma percepção realista, construída a partir da história constitucional, que permite colocar em evidência as condições e garantias capazes de tornar possível o bom funcionamento do Estado Constitucional. E este bom funcionamento consiste em alcançar um tipo de dire-ção do processo político através do qual se possa compatibilizar as exigências de “rea-lismo” e de “justificação” como base de uma paz social em liberdade. A democracia não é uma categoria baseada apenas em uma justificação moral, mas um mecanismo repleto de fundamentos práticos – a exemplo dos que estamos apontando – para a tomada de decisões sobre o estabelecimento de critérios e normas comuns.
Agassiz Almeida Filho – Se um dado país não possui uma tradição de respeito às instituições do Estado Constitucional, o que fazer para que a Constituição goze de um mínimo de efetividade normativa?
Rafael de Agapito Serrano – É realmente uma tentação responder esta pergunta com os versos de Antonio Machado:
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Caminante, son tus huellas,
El camino y nada más;
Caminante no hay camino,
Se hace camino al andar.
Talvez se deva fazer algum comentário adicional à idéia do verso caminante no hay camino. Para o Direito Constitucional, o fato de que não há caminho é verdade apenas em parte. Não é verdade no sentido de que hoje temos conhecimento suficiente e exem-plos para intuir para onde e como se pode caminhar. Mas é totalmente correto se pen-sarmos que o caminho de cada um, individual ou institucionalmente, não está previa-mente traçado. As particularidades das distintas situações não permitem, sem mais nem menos, que se adote modelos alheios. É preciso construir o próprio caminho pessoal-mente, a partir da consciência e da liberdade de cada um.
O verso se hace camino al andar, contudo, parece totalmente adequado ao nosso con-texto. Neste caso, a obra do poeta poderia sugerir que a possibilidade de tornar efetiva a proposta normativa de um Estado Constitucional se dirige a cada um dos seus membros e componentes. A vigência normativa da “Constituição” em um Estado democrático depende sempre da consciência e do exercício da posição constitucional de cada indiví-duo.
Em grande parte, esse é o significado das afirmações de que o Estado Constitucional democrático é o menos ruim dos modelos de governo ou de que ele é o modelo de go-verno mais forte, sólido e, ao mesmo tempo, mais frágil. Afinal, depende de que os ci-dadãos, por si mesmos ou através dos cargos que ocupem, “queiram” cumprir e fazer cumprir esse modelo de governo, com seus direitos e garantias. A liberdade é a base do Estado Constitucional. Sua proteção através de um complexo normativo e institucional mais ou menos desenvolvido é a única garantia que existe para tornar efetivo esse mo-delo de governo.
Agassiz Almeida Filho – Nos últimos quarenta anos, qual a principal dificuldade enfrentada pela realização do Estado Constitucional na Europa? Essa conclusão também se aplicaria à América Latina?
Rafael de Agapito Serrano – No cenário atual, se tivesse que apontar um fator ele seria a tendência de se autonomizar a política, quer dizer, o processo político e também a classe política, em relação às suas bases em uma democracia representativa. Trata-se de um fenômeno que se pode constatar na atualidade de forma generalizada, ainda que, natu-ralmente, sua intensidade varie conforme os Estados em questão. Essa diferença de in-tensidade depende do nível de desenvolvimento e funcionamento efetivo dos controles e garantias próprios de cada Estado Constitucional; depende, em última medida, do de-senvolvimento e do funcionamento do Estado Social e Democrático de Direito, para usar os termos da nossa Constituição.
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Os argumentos que sustentam essa tendência são variados. Porém, nas sociedades com-plexas atuais, poder-se-ia assinalar a presença de um forte pluralismo – social, econômi-co e político – como algo fundamental. Tal pluralismo se manifesta através de relações e conexões entre esses três âmbitos. Em geral, ele pode dar origem ao nascimento do que se poderia chamar de “oligarquia constitucional”. As decisões fundamentais fre-qüentemente são negociadas e elaboradas em âmbito extra-parlamentar, limitando-se o parlamento a confirmá-las por meio de uma maioria conjuntural.
De fato, muitas das decisões que se deve tomar nas sociedades atuais apresentam um elevado nível técnico e de complexidade, e isso conduz à idéia de que não são compre-ensíveis para a maioria dos cidadãos. Estes, nas palavras de Ángel de Juan, vêem-se reduzidos à posição de indivíduos politicamente massificados e socialmente consumido-res (e mesmo consumidos), sem capacidade ativa para conhecer as conseqüências destas decisões ou de influenciá-las. No final, resta-lhes o recurso último das eleições para produzir alguma mudança na alternância dos partidos políticos ou das coalizões forma-das entre eles, apresenta um caráter muito geral e efeitos limitados.
Esse quadro pode parecer radical, marcado pelo dramatismo crítico. No entanto, trata-se de uma possibilidade real, cuja intensidade depende, em última caso, da força e clareza dos princípios e normas constitucionais que regulam o funcionamento das nossas insti-tuições. Naturalmente, não se pode evitar a complexidade das questões que surgem nes-sas sociedades, e, menos ainda, querer simplificá-las. Porém, nessa mesma medida, de-ve-se ressaltar que a complexidade das instituições e garantias próprias do Estado Cons-titucional é compatível com o nível de complexidade existente no plano social. E mais, elas possuem a envergadura necessária para dar uma resposta a essa complexidade soci-al.
Nesse sentido, convém mencionar a capacidade do parlamento ou dos representantes políticos de usar e combinar sua competência – encargo de compreender tais questões – com a obrigação de dar satisfações políticas e responder por sua atuação. Essa é sua difícil função, seu exigente labor. A decisão normativa última está em suas mãos, e a participação dos representantes na tomada de decisões precisa ocorrer com transparên-cia, ponderando acerca das conseqüências dessas decisões para seus representados: os cidadãos.
Cabe também recordar a exigência constitucional de um funcionamento democrático dos partidos políticos, não apenas em um sentido político formal, durante os momentos eleitorais, mas também no âmbito da sua dinâmica interna (art. 6º da Constituição espa-nhola). Esta última exigência é um mecanismo inevitável para que os programas e pro-postas dos partidos tenham como base uma conteúdo democrático. Trata-se da única via capaz de contribuir para a elaboração de uma proposta baseada na interpretação do inte-resse geral, proposta dotada também de uma suficiente concreção social. O funciona-mento dos meios de comunicação, que precisa ser plural e observar garantias de objeti-vidade, é um complemento fundamental para o funcionamento do processo político.
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Nessa mesma linha, também é importante ressaltar a possibilidade e exigência de uma atuação objetiva da Administração Pública. Devido à sua posição de executora das polí-ticas públicas, a Administração precisa manter uma nítida autonomia frente a eventuais ingerências políticas particulares, o que é possível mediante sua vinculação às leis. Na-turalmente, isso pressupõe a existência de condições adequadas para assegurar sua auto-nomia em relação às instâncias políticas.
A distinção que nossa Constituição estabelece entre as funções governamentais de dire-ção política e de execução (art. 97) deve ser levada a sério. A partir de tais funções, é preciso desenvolver garantias que possam compensar a força e a capacidade de ação dos órgãos de direção política. Portanto, é necessário dar importância à mencionada distin-ção, posta como limite à função política de governo desempenhada pelo partido político ou coalizão que obtêm a maioria em um determinado momento. Nesse contexto, desper-tam total interesse as reflexões de Alexandre Paiva Melo sobre os limites do poder nor-mativo do Executivo. Por fim, não é necessário ressaltar a relevância e o peso de uma administração da justiça baseada em uma efetiva independência judicial.
Agassiz Almeida Filho – Qual a importância da História e da Filosofia Política pa-ra a formação do constitucionalista?
Rafael de Agapito Serrano – A essa altura da entrevista, acho que já deixei transparecer que a História e a Filosofia Política, para mim, são elementos imprescindíveis à forma-ção e ao trabalho interpretativo de todo constitucionalista. De fato, as categorias e as instituições com as quais lidamos possuem um profundo significado histórico. Não exa-tamente no sentido que lhes pôde atribuir o historicismo, que, sem dúvida, é parte da nossa tradição conceitual. Estou me referindo àquela diferenciação entre Historie e Ges-chichte elaborada na tradição alemã, que parte de Herder, mas se baseia em Vico e Montesquieu.
Porém, a menção à História e à Filosofia Política não pode ser entendida como um re-curso externo a outras matérias, diferentes, ainda que relacionadas. Na verdade, a idéia é buscar, através dessas disciplinas, pontos de vista e conhecimentos capazes de acrescen-tar algo relevante às nossas categorias fundamentais e à sua interpretação atual. O fato de nossas categorias e instituições terem um significado “histórico” é algo que se rela-ciona com a própria idéia de Estado Constitucional.
O Estado Constitucional não pode ser compreendido corretamente se for pensado como um marco normativo criado para reger o dia a dia da convivência, sujeito, naturalmente, às alterações que surgem com o passar do tempo. Na verdade, quando se “inventa” e se coloca em prática esse específico modelo de governo, baseado na liberdade, a idéia é estabelecer um instrumento de governo cuja atribuição específica é regular um processo. O sistema constitucional não regula diretamente as relações sociais nem resolve direta-mente os conflitos entre interesses que eventualmente despontam na sociedade.
Portanto, não é um marco estático, voltado para a regulação direta das relações sociais, como a legislação infraconstitucional. Trata-se de um marco constitucional, e esta sua natureza “constitucional” implica dizer que sua razão de ser é garantir e assegurar a pos-
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sibilidade de que se realize um processo. Este se manifesta através de um momento po-lítico (de elaboração e justificação de normas de caráter geral como resposta à realidade social) e de um momento jurídico (de aplicação direta dessas normas), usando aqui os termos do professor Ángel de Juan. Ambos têm que ser entendidos como momentos claramente diferenciados. O resultado do seu funcionamento, porém, deve ser a genera-lização progressiva, junto à sociedade, dos pressupostos estabelecidos dentro dos mar-cos constitucionais.
Essa natureza “constitucional” – ou “constitutiva” – reflete-se também no fato de os referidos marcos normativos incluírem os princípios básicos segundo os quais são fixa-das as bases da vida em sociedade, a partir de argumentos que se consideram justifica-dos e legítimos. Mas nesse ponto também há uma tensão inevitável. Na verdade, tais princípios correspondem à fixação ou concretização, em fórmulas jurídicas, dos pressu-postos últimos ou critérios que, para dizê-lo de alguma maneira, possuem um sentido “regulatório”. Assim aparecerão, por exemplo, as formas histórico-constitucionais com as quais se relacionam concretamente a liberdade ou a igualdade no Estado Liberal. De fato, essas formas histórico-constitucionais não correspondem à nossa compreensão atual acerca desses dois princípios.
O caráter processual do Estado Constitucional faz deste o regulador e garantidor de um processo. À primeira vista, tal caráter também inclui a possibilidade de se refletir, teóri-ca e praticamente, sobre as fórmulas jurídico-constitucionais através das quais são fixa-dos e concretizados aqueles princípios. Nesse sentido, e por causa do profundo processo de secularização que acompanha o desenvolvimento do Estado Constitucional, também os fundamentos básicos desse modelo de governo devem ser suscetíveis de reflexão (teórica e prática), passando, conforme o caso, por incrementos ou modificações.
A questão nuclear e verdadeiramente difícil do Direito Constitucional é descobrir como se pode conhecer e interpretar de forma justificada os princípios sobre os quais repousa o ordenamento constitucional. Para isso, é importante, imprescindível, desde o meu ponto de vista, saber como se formularam concretamente esses pressupostos nas distin-tas formas históricas assumidas pelo Estado Constitucional. Também é fundamental saber que conseqüências elas tiveram no desenvolvimento histórico da sociedade.
No conteúdo atual desses princípios, a exemplo do que ocorre com o princípio da igual-dade, conservam-se conquistas alcançadas em fases anteriores. Hoje, apesar da formula-ção anacrônica do art. 14 da nossa Constituição, é evidente que o princípio e o direito à igualdade não podem se limitar ao significado contido na expressão “igualdade perante a lei”. Ao mesmo tempo, porém, essa igualdade, que atualmente tem status de princípio constitucional, não só em termos de aplicação da lei, também não pode ser entendida como uma igualdade material, como se fosse uma espécie de homogeneidade adminis-trada pelo Estado. Essas manifestações históricas do princípio, contudo, constituem uma parte do nosso conhecimento sobre as categorias e instituições do Direito Constitucio-nal.
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Pode-se dizer que dispomos de um “conhecimento negativo” desses princípios, que ga-nha forma através da verificação histórica da sua formação, da sua fixação em fórmulas concretas e dos seus resultados no processo social. Esse conhecimento inclui determi-nados conteúdos acerca das categorias básicas da ordem constitucional que ainda hoje possuem justificação, ainda que um contexto mais amplo. Ele é negativo porque aí se faz presente também o conhecimento dos limites e insuficiências dessa histórica con-cepção jurídico-constitucional, obtido de acordo com os resultados da sua aplicação. Trata-se, pois, de um conhecimento que torna claro esse nível abaixo do qual não se deve descer, se não se quiser repetir a história.
Nesse sentido, o conhecimento da história jurídico-constitucional, as reflexões da Filo-sofia Política e a experiência histórica são fundamentais para reconhecer esse acervo de conhecimentos que está presente também nas formulações contemporâneas. Além disso, com parece de todo evidente, também é necessário incorporar a esse acervo uma refe-rência à “Filosofia Moral”, aproveitando o que esta tem de reflexão sobre os pressupos-tos últimos da vida em sociedade ou sobre os modos de reconhecer e fundamentar tais pressupostos.
A Teoria Constitucional, como já assinalei em outro momento, constitui um acervo de conhecimentos que acrescenta critérios adicionais muito úteis na hora de interpretar o significado e a conexão sistemática das nossas categorias e instituições jurídico-constitucionais.
Agassiz Almeida Filho – Qual a mensagem que você deixaria para os jovens que desejam estudar Direito Constitucional e seguir a vida acadêmica?
Rafael de Agapito Serrano – Talvez a leitura destas últimas considerações possa desa-nimar aqueles que buscam sua formação no terreno do Direito Constitucional, uma vez que, aparentemente, seria necessário um “Hércules” intelectual para conseguir atuar profissionalmente nesse campo de estudos. Não se trata disso, mas realmente a forma-ção de um constitucionalista não é tão clara e direta como em outros ramos do Direito. O Direito Constitucional abarca os fundamentos e as condições de validade de todo o ordenamento jurídico, o que dá origem a uma certa dificuldade adicional no momento de estudá-lo.
Sem a intenção de reivindicar qualquer posição de proeminência, pode-se dizer que na nossa área é preciso mais tempo e mais maturidade para se chegar a uma formação sufi-ciente e a uma compreensão adequada da matéria. Porém, esse esforço vale a pena, de-vido à riqueza das questões que aparecem com o estudo do Direito Constitucional. Para que isso ocorra, é natural desejar um apoio mais firme e a compreensão dos constitucio-nalistas em relação àqueles que estão começando a estudar a matéria na vida acadêmica.
Com tudo isso, não quero dizer que os novos constitucionalistas, já no início da sua car-reira, devam se dedicar a um campo de estudos excessivamente amplo. Na verdade, eles devem se posicionar conforme as exigências que venham a surgir ao longo das suas atividades. É importante não deixar de lado as dúvidas que venham a aparecer e dedi-car-se a superá-las, mantendo-se aberto ao debate, à discussão sobre as próprias idéias e
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as dos outros, tomando essa postura como base para a corroboração e evolução da sua própria forma de pensar. A solidez na formação e a construção de uma visão mais ampla são o resultado natural da maturidade que surge dos sucessivos passos do constituciona-lista no desenrolar do seu trabalho.
Se devo deixar alguma mensagem aos jovens constitucionalistas, esta não poderia ser outra, senão o apego ao rigor intelectual como critério de trabalho, postura a ser adota-da, aliás, por todo estudioso.
Fonte: Danielle Cruz
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